Artigos sobre o Islã: Parte IV - Hadiths
Dando continuidade à série sobre o Islã, o blog publica o quarto texto de autoria de Alexandre Semedo de Oliveira*. O primeiro, você acessa clicando em:
O segundo, clicando em:
E o terceiro, clicando em:
Segue o quarto texto da série:
Hadiths
Nos artigos anteriores, pudemos
expor aos leitor que, no Islã, Maomé é o supremo modelo de conduta e que
conhecer sua vida é de fundamental importância para os muçulmanos. Sem tal
conhecimento, tendo-se em vista que o Alcorão, em que pese sua centralidade na
fé islâmica é completamente lacônico, o muçulmano comum fica privado de regras
objetivas pelas quais pautar sua conduta.
A pergunta que surge, então, é
qual a fonte pela qual se pode conhecer a vida desta personagem?
Obviamente que a fonte não pode ser
o próprio Alcorão, mesmo porque o termo “Mohammad” é nele citado apenas quatro
vezes e, em três, não necessariamente se referindo ao profeta dos árabes
(lembremos mais uma vez que a tradução deste nome seria “o louvável”, que, por
sua vez, é um título comum a todos os profetas).
Na verdade, a principal fonte de
tal conhecimento são os chamados hadiths[1],
ou os ditos e feitos (principalmente) de Maomé. São milhares e milhares de hadiths que, se verdadeiros, comporiam
um quadro absolutamente detalhado de sua vida, não sendo nenhum exagero
dizer-se que, praticamente dia a dia, seriam conhecidos os seus atos.
Contudo, é justamente a
credibilidade dos hadiths que se põe em dúvida.
Isto porque eles começaram a ser
coletados cerca de dois séculos depois da suposta morte de Maomé, quando
estórias sobre ele circulavam abundantemente dentro de uma cultura oral e,
portanto, passível de fácil mitificação. Existem diversas coleções de hadiths, mas, em geral, as consideradas
mais emblemáticas são as de Mohammed al-Bukhari e de Muslim bin Tajajj.
Vejamo-las em separado.
a) al-Bukhari: a partir de um sonho em que afastava moscas de Maomé,
Mohammad al-Bukhari acreditou ser sua divina missão percorrer o mundo islâmico
coletando os ditos e feitos de seu profeta, separando os que fossem fidedignos
(sahih) daqueles que fossem falsos
ou, pelo menos, de autenticidade duvidosa.
Al-Bukhari, então, viajou pelas
diversas províncias muçulmanas, entrevistando pessoas e coletando os hadiths. Conta-se que, ao todo, coletou
cerca de 300.000 (!) ditos e feitos, reputando apenas 6.000 como sahih. Mesmo entre estes, há muitas
repetições, pelo que, na verdade, a quantia total de hadith coletados e tidos por fidedignos é inferior a quatro mil
(quantia esta que, convenhamos, já é assombrosa).
Para separar os hadiths verdadeiros dos falsos,
al-Bukhari utilizou-se de alguns critérios. Em primeiro lugar, todo e qualquer hadith que contrariasse o Alcorão era
imediatamente descartado[2]. Depois, verificava-se a
chamada “cadeia de transmissão” (isnad),
considerando-se como fidedigno um hadith
que contasse com uma corrente ininterrupta de testemunhas.
Para se dar um exemplo do que se
quer dizer, vejamos um hadith:
“Nos foi relatado por Abu `Amr
ibn Ahmad Othman As-Sammak Al-Baghdadi Al-Hasan: eu ouvi de ibn Mukarram, que
ouviu de Othman Ibn 'Amr, que ouviu de Yunus, que falou sob a autoridade de
Az-Zuhri, que falou sob a autoridade de Abdullah ibn Ka`b ibn Malik, que falou
sobre a autoridade de seu pai, que pediu para Ibn Abi Hadrad pagar uma
dívida, na mesquita. Durante a discussão que se seguiu, suas vozes se elevaram
até que foram ouvidas pelo mensageiro de Allah (que a paz esteja com ele), que
acabou levantando a cortina de seu apartamento e disse: "Ó Ka`b! Amortize
uma parte de sua dívida", ele quis dizer com isto a remissão de metade.
Então ele concordou, e o homem pagou-lhe. fonte: http://www.onislam.net/english/shariah/hadith/hadith-methodology/441467.html,
tradução nossa)
A parte por nós colocada em
negrito se refere à cadeia de transmissão. O restante é o hadith propriamente dito.
Assim, se a cadeia de transmissão
fosse ininterrupta e se contasse com conhecidos e piedosos muçulmanos, então,
Bukhari tomava-o como fidedigno, independentemente da consistência interna da
narração, mesmo que ela viesse a retratar Maomé de uma forma grotesca ou
hilária.
b) Muslim bin Tajajj: a segunda coleção tida por mais autorizada de
hadiths foi coletada por Muslim bin
Tajajj. Tal qual anteriormente fizera al-Bukhari, Muslim viajou o mundo
muçulmano coletando as narrativas e, tal qual seu antecessor, chegou a ajuntar
cerca de 300.00 delas, separando, pelos mesmos critérios, cerca de 3.000. Sua
coleção é conhecida como sahih Muslim,
e os hadiths nelas narrados são
tidos, pela imensa maioria dos muçulmanos, como normativos.
Desta forma, tem-se que, de um
universo de aproximadamente 300.000 narrativas, tanto al-Bukhari quanto Muslim
descartaram a imensa maioria delas, retendo apenas 1% do que coletaram. Isto
demonstra que, à época da compilação dos hadiths,
havia
uma verdadeira fábrica de falsificações, por meio das quais estórias sobre
Maomé surgiam da forma mais despudorada possível.
A razão para tamanha quantidade de
falsificações reside no já mencionado caráter lacônico do Alcorão e em suas
passagens incompreensíveis, que impunha aos muçulmanos comuns a tarefa de
inventar estórias que, de um lado, estabelecessem regras práticas para o bem
viver e, de outro, que pudessem permitir uma leitura minimamente inteligível de
seu livro sagrado. Por meio dos hadiths,
criando as chamadas “ocasiões da revelação” e projetando-as retroativamente até
Maomé, os muçulmanos conseguiam dar sentido às inúmeras passagens obscuras e
incompreensíveis, criando, eles próprios, um universo religioso no qual
pudessem viver.
Desta forma, hadiths surgiam para justificar determinado modo de vida que,
posteriormente, eram combatidos por outros hadiths
que visavam denunciá-lo. Facções políticas criavam hadiths que retratavam seus heróis positivamente (com frequentes
elogias de Maomé relativamente a eles) e as fações inimigas combatiam estas
práticas criando, elas próprias, outras narrações, ou que fossem embaraçosas
para estes mesmos personagens, ou que retratassem os personagens rivais de
forma igualmente laudatória.
A confusão era evidente, daí a
necessidade sentida por al-Bukhari de espantar as moscas, separando as
narrativas confiáveis das francamente falsas.
Porém, e por óbvio, o critério por
ele utilizado (e posteriormente seguido por Muslim) é dos mais frágeis e,
poder-se-ia dizer, chega a ser pueril. Ele parte do princípio de que a
narrativa pode ser falsa, mas que a cadeia de transmissão é sempre verdadeira,
o que é uma tolice manifesta.
Isto porque, se é um fato aceito
desde o princípio que havia uma verdadeira fábrica de hadiths falsos, não se percebe qualquer razão para que aqueles que
falsificavam as narrativas não viessem a falsificar, com a mesma facilidade, as
cadeias de trasmissão (isnad).
Qualquer pessoa que quisesse criar uma historieta acerca de Maomé para servir
aos seus propósitos pessoais não vacilaria em inventar, igualmente, uma cadeia
de transmissão que lhe desse credibilidade. E, como literalmente às centenas de
milhares, se criavam narrativas falsas, por óbvio que a própria credibilidade
da cadeia de transmissão é nenhuma.
Assim, uma vez que o Alcorão é de
todo lacônico, um muçulmano se vê obrigado a recorrer a hadiths cuja confiabilidade histórica é oca. Há uma impossibilidade
objetiva de se saber o que Maomé fez ou o que deixou de fazer; o que disse, e o
que calou; o que mandou e o que proibiu. Há uma impossibilidade histórica de se
saber se as “ocasiões de revelação” são verdadeiras ou falsas, o que impõe a
conclusão de ser impossível, objetivamente, saber-se o que boa parte do Alcorão
efetivamente significa.
Por fim, tenha o leitor sempre em
mente que os hadiths, por mais
estranhos que pareçam e por mais obviamente falsos que sejam, se tidos por sahih (fidedignos) são normativos e
cogentes para um muçulmano, que deve amoldar sua vida a eles. E, sem eles, a
própria compreensão do Islã se torna impossível.
Para encerrar este pequeno artigo,
gostaria de deixar alguns hadiths
bastante constrangedores, porém tidos por sahih.
Todos coletados do próprio al-Bukhari. E todos devem ser levados a sério pelos
muçulmanos mundo a fora...
Bukhari Volume 4, Livro 54, Número
537: Narrou Abu Huraira: O Profeta disse: "Se uma mosca cai na bebida de
alguém, deve-se mergulhá-la (na bebida), pois uma de suas asas traz uma doença e a outra traz a cura desta mesma doença
".
(Bukhari 2: 134) “O sol nasce
entre os dois chifres de Satanás ".
(Bukhari, Livro de Nikah 3:60). O
Profeta disse: "A má sorte, a infelicidade e a desgraça podem existir em uma
esposa, uma casa e um cavalo"
(Bukhari, Livro de Nikah 3:61)
“Depois da minha época, a maior tribulação para os homens serão as mulheres
"
(Bukhari, Livro de Nikah 3:97) “Vi
que a maioria das pessoas que entram pelo portão do inferno de fogo eram mulheres.”
(Bukhari Kitabul Mahrabain e
Kitabut Tib p.254) “Algumas pessoas ficaram doentes em Medina. O Profeta
aconselhou-os a beber urina de camelo e leite (...).”
(Bukhari, início da criação 2:
241): “À noite, Satanás repousa em seus narizes.”
Fixadas, pois, a importância do
Alcorão, de Maomé e dos hadiths,
pretendemos num futuro próximo, se Deus o permitir, tratarmos talvez do assunto
mais importante no mundo atual: a jihad.
[1]
De plano, sinto a necessidade de esclarecer um ponto. A literatura em português
acerca deste assunto é praticamente inexistente, razão pela qual utilizo-me,
para abordá-lo, de fontes estrangeiras, quase todas em língua inglesa. Nesta
língua, os “ditos e feitos” são tratados por hadiths, cujo singular é hadith.
Não sei de nenhum termo correspondente em português e, na verdade, sequer
saberia dizer se tal correspondência existe. No site http://books.islamway.net/pt/pt_forty_Hadith.pdf,
utiliza-se o termo hadith como se
plural fosse; em outros, parece que o plural é feito como ahadith. Uma vez que não tenho condições pessoais de verificar qual
é a forma mais correta, preservo aquela com a qual estou mais acostumado: hadith (para o singular) e hadiths( para o plural)
[2] Este
critério, embora faça todo sentido para um muçulmano piedoso, peca pela falta
de objetividade para quem não é muçulmano. Isto porque, a rigor, não existe
nenhuma razão objetiva para supor-se que Maomé não teria ensinado algo que
contrariasse o Alcorão ou praticado algo que também o contrariasse.
Historicamente, é de todo possível que tal contrariedade tenha se verificado, e
desprezar tais hadiths pode
significar privar o fiel muçulmano de um quadro objetivo de seu profeta.
* O autor é Juiz de Direito no Estado de São Paulo.