AS ALTERNATIVAS DO HOMEM[i]
Gustavo Corção
De todos os dualismos de sua natureza,
e depois dos contrastes que marcaram tragicamente a origem do homem, decorre e
se impõe à nossa atenção o dualismo moral.
Em outro estudo já disse que me sinto
inteiramente incapaz de escrever um livro, opúsculo ou um só artigo sobre
filosofia da história; mas acrescentei que ainda me sinto mais incapaz de
escrever o mais modesto estudo sobre o sentido ou o mistério da humana
história, sem colocá-lo na pauta da teologia. Além disso, quando se trata de
considerações feitas não apenas em torno do valor moral de um ato humano, mas
em torno da orientação de uma vida, ou da orientação geral de uma civilização,
não importa apenas o dualismo “bem - mal” traçado em cada ponto, mas a atitude
habitual, a escolha do quadrante que não se quebra pela falha de um ato
isolado, mas se perde pelo gosto de novas doutrinas que fazem cócegas nas almas
inquietas.
Para melhor situar o problema
recorramos aos famosos binômios de dialética paulina: homem interior – homem
exterior, espírito – carne, homem velho – homem novo, que servem de bússola
para a aferição das alternativas humanas ou que servem de critério de ordem ou
desordem da vida.
Em estudo publicado na revista
“Itineraires”, e todo ele firmado em Santo Tomás, IIa IIae q.25, discorremos
sobre a ordem da caridade, e vimos que é no centro mesmo da pessoa humana, no
eu-dual, interior e exterior, que a alma humana encontra seu mais insidioso
adversário que a tornará “aversa a Deo”: o amor-próprio, ou seja, amor de si
mesmo voltado para as coisas inferiores e exteriores, que tornará a alma
indócil aos ditames da própria consciência.
O mais alto e decisivo dos amores de
caridade é evidentemente aquele que nos vem de Deus, mas o acolhimento dos dons
de Deus está na dependência da atitude em que se coloca a alma: se ela está
prevalentemente voltada para baixo, para as coisas exteriores e inferiores, e entregue
ao capricho de sua vontade própria, o dom de Deus será recusado por desatenção,
indiferença ou por uma opção que esta alma tenha tomado, de ser ela mesma a sua
própria lei.
Podemos entretanto imaginar uma alma
entregue habitualmente e prevalentemente a coisas exteriores e inferiores mais
ou menos nobres, e nem sempre visivelmente infames, sem tirarmos deste triste
espetáculo a conclusão, geométrica demais, de sua perdição. Quem já viveu
longos anos, longos dias, e sobretudo longuíssimas horas, sabe que não é tão
esquemático o problema da sorte do homem, e sabe que as almas aparentemente
mais entretidas com o nada do mundo têm reservas inacreditáveis que a
misericórdia de Deus, chegada a hora, descobre e colhe no meio de lixo
acumulado de uma vida mal vivida.
Enquanto as desordens dessas almas
invertidas são apenas retalhos e cacos, ou mesmo enquanto o esquecimento de
Deus é mantido por um gosto subalterno mas não contrário à Lei de Deus e a seus
mandamentos, ainda se pode esperar que a hora formidável da morte traga um
relâmpago capaz de compreender uma vida inteira de desleixo espiritual.
Mais sombrias se tornam as alternativas
se a alma negligente das coisas de Deus de tal modo se afasta da vida interior
que chegue a esquecer as linhas essenciais da doutrina da salvação as palavras
por Deus mesmo escolhidas para o grito de socorro.
Mais se agravam as consequências da
desordem quando, em vez de desvios acidentais, elas se erigem em sistema
orientador de toda uma vida. E ainda mais se acentua a gravidade das
alternativas quando a desordem erigida em sistema se difunde, se coletiviza e
se torna critério, norma ou moda de uma civilização, ou imposição de uma época.
Chegada a desordem a este ponto, a
sociedade poluída pela evaporação de cada ato desordenado se torna um
envoltório que retroage e acelera as perturbações individuais até que alguma
catástrofe ou alguma intervenção venha quebrar o círculo de tal “feed-back”.
Grande benção de Deus, para os homens e
as nações, é o envoltório cultural que propicia a mantença da ordem da ordem
espiritual por um processo de causação circular que tanto pode funcionar para o
equilíbrio ou o progresso da ordem, como para a mantença ou aceleração da
iniquidade.
Na Idade Média, que por favor de Deus
durou mil anos, o Ocidente viveu uma civilização cristã, isto é, uma
civilização com justos e pecadores, trágica e tumultuosa, mas centrada em
Cristo Nosso Senhor. Longe de querer apresentar esse milênio como um paraíso de
tranquila piedade, diríamos até que neste tempo os homens viveram com viva
consciência das abismais alternativas da sorte das almas. E se a ordem da lei
divina era ferida em cada gesto de fraqueza humana, não era negada ou
substituída por ordem de invenção humana.
De Santo Agostinho a Santa Catarina de
Sena manteve-se o reinado de Cristo, e observou-se a regra de ouro da vida
interior: “conhece-te a ti mesmo”, que Etienne Gilson, na sua monumental
obra L’Esprit de la Philosophie Medievale, chamou de “socratismo
cristão”.
O homem medieval, atrasadíssimo em
odontologia, cardiologia, na eletrônica, na balística e nas outras coisas desse
gênero que constituem a glória dos modernos, vivia especialmente prevenido
contra a malícia do amor-próprio, isto é, contra os riscos da subversão no
próprio centro do eu. Sabia que o amor-próprio falso e enganoso amor do eu
exterior, era “fonte e origem de todos os pecados”.
Mas logo depois do maior dos séculos
começa a surgir no mundo medieval, ferido pela peste de cem anos e por
profundas misérias fermentadas entre os homens da Igreja, uma murmuração de
queixas e boatos.
Dentro de uma misteriosa carga de
ressentimentos surgem notícias de descobertas e novidades. Mas a coisa nova não
é a mesa que deslumbrou o Apóstolo: - “Vede, tudo é novo ! Quem está em Cristo
é uma nova criatura!”(II Cor. V., 16,17)
A novidade anunciada pelos habitantes
daqueles séculos que marcavam o fim do mundo medieval não era o único Novo
anunciado por São Paulo, não era o Cristo; era o mundo novo, o homem, uma
civilização do Homem-Exterior, cujos frutos amargos nos são oferecidos no
limiar do Apocalipse.
[i] Publicado originalmente em O Globo, aos 08 de maio de 1976.
Fonte: Corção, Gustavo; Gustavo Corção Tomista;
Artigos Filosóficos; Ed. Permanência.
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