Dando continuidade à série sobre o Islã, o blog publica o segundo texto de autoria de Alexandre Semedo de Oliveira. O primeiro, você acessa clicando em:
Segue o segundo texto:
Parte II: Maomé e sua
centralidade na fé islâmica.
Para que se possa compreender o
Islã, é absolutamente necessário conhecer-se a figura e a história de Maomé.
Não apenas porque ele é o fundador mesmo desta religião, mas porque a própria
revelação islâmica ocorreu, conforme as tradições dos muçulmanos, tendo como
pano de fundo sua vida.
Na verdade (conforme veremos um
pouco mais à frente), o Alcorão, enquanto livro, confere muito pouca informação
acerca de moral religiosa e, lido sozinho, é bastante confuso e, muitas vezes,
incompreensível e contraditório. Para entendê-lo, e para fundamentar sua
prática religiosa, os muçulmanos recorrem à vida de seu profeta de tal forma
que determinada passagem obscura possa ser compreendida no cotejo dela com o
que acontecia com Maomé no momento mesmo em que ela foi revelada. Pois, por
incrível que possa parecer ao um ocidental, muito da revelação islâmica ocorreu
apenas para que se resolvessem problemas da vida de Maomé.
Veja-se, por exemplo, o que consta
da Sura 33, 53:
Ó fiéis, não entreis na casa do
Profeta, salvo se tiverdes sido convidados a uma refeição, mas não para
aguardardes a sua preparação. Porém, se fordes convidados, entrai; e quando
tiverdes sido servidos, retirai-vos sem fazer colóquio familiar, porque isso
molestaria o Profeta e este se envergonharia de vós; porém, Deus não Se
envergonha da verdade. E se isso será mais puro para os vossos corações e para
os delas. Não vos é dado molestar o Mensageiro de Deus nem jamais desposar as
suas esposas, depois dele, porque isso seria grave ante Deus.
O trecho acima mostra, claramente,
como a revelação corânica funciona. Maomé tem um problema? Deus se apressa em
resolvê-lo[1], mandando uma revelação
com este intuito. Ainda que se trate de um problema banal (no caso, parece que
Maomé se incomodava com constantes visitas e com o fato de elas demorarem em
sua casa após o jantar, mas tinha vergonha de dizê-lo), suras desciam do céu
para dele livrar o predileto de Deus. Por vezes, da leitura do próprio
versículo se percebe qual o problema de Maomé que Deus está resolvendo com ele;
outras vezes, não é possível percebê-lo pelo texto mesmo, sendo, então,
necessário recorrer-se às diversas narrações de sua vida para se saber o que
acontecia no momento em que a revelação veio, e, assim, entender o que ela
significa.
Portanto, é absolutamente
necessário, nesta série de artigos que visa introduzir o leitor no conhecimento
do Islã, um conhecimento, ainda que superficial, da vida de Maomé. É o que
passamos a fazer.
Maomé teria nascido, segundo a
historiografia islâmica tradicional, no ano de 570 da Era Cristã. Seu nome em
árabe (Mohammed) significa “Aquele que é digno de louvor” e, na verdade, é um
título dado a todos os profetas, não existindo registro de ninguém que tenha
tido tal nome antes do próprio Maomé. Seu pai se chamava Abdallah, cujo
significado é “servo de Deus”, tratando-se também de um título comum a todos os
profetas. Desta forma, o nome completo do fundador do Islã é Mohammed bin
Abdallah: o digno de louvor, filho do servo de Deus; o que, na verdade
constitui um suspeito amálgama de títulos dados aos profetas em geral.
Seja como for, Maomé perdeu os
pais ainda criança e foi criado por seu tio, jamais aprendendo a ler. Com a
idade de 25 anos, casou-se com uma viúva rica da cidade de Meca, cujo nome era
Khadija, e, a partir de então, tinha tempo de sobra para não fazer coisa
alguma, supostamente dedicando-se à meditação.
No ano de 610, quando já tinha cerca
de 40 anos, Maomé se retirou para uma caverna (al Hira) aos arredores de Meca,
e lá, recebeu a visita de um ser misterioso, que, sufocando-o, ordenava:
“Leia!”. O pobre Maomé informou que não sabia ler, mas o visitante insistia:
“Leia!” Depois de ter sido informado, pela terceira vez que Maomé não sabia
ler, o visitante revelou ser o anjo Gabriel, e que, doravante, ele seria um
anunciador de uma nova religião.Esta primeira revelação seria, hoje, a Sura 96
(“O Coágulo”)
Qualquer cristão acostumado às narrativas
de aparições de anjos nas Sagradas Escrituras percebe, claramente, que há algo
de errado nesta estória. Os anjos, quando aparecem aos homens por favor divino,
causam, ao certo, um temor naquele a que visitam, mas, desde logo, tratam de
acalmá-los com palavras de conforto: “Não temais”; ou “não tenhais medo”.
O “Gabriel” de Maomé, contudo,
agiu de forma diversa, atacando-o violentamente diversas vezes,
estrangulando-o, sem jamais confortá-lo, o que se assemelha mais a uma aparição
demoníaca do que propriamente a uma angelical.
O fato é que Maomé relatou o
ocorrido a Khadija, que o levou a aconselhar-se com seu tio, Warraca,
supostamente um cristão que traduzia os Evangelhos (ao menos parte deles) para
o árabe, apesar de ser cego. Pois bem, quando Warraca ouviu o relato de Maomé,
concluiu que, de fato, o Anjo Gabriel o visitara e que ele (Maomé) era um
profeta como Moisés.
Causa estranheza que Warraca não
tenha percebido nada de diferente entre as “aparições” de Maomé e aquelas que o
Novo Testamento narra acerca do Arcanjo São Gabriel; causa ainda maior espanto
que ele, “cristão”, baseando-se apenas nesta estranha narração tenha dito que
Maomé seria um profeta à semelhança de Moisés, como se, com a vinda de Nosso
Senhor, houvesse ainda alguma necessidade de outra revelação e como se os
cristãos não acreditassem que, após a morte do último apóstolo, as revelações
públicas houvessem terminado. Assim, a imediata aceitação de Warraca da missão
deste novo profeta torna toda a narrativa absolutamente inverossímil.
Pelos doze anos seguintes (até o
ano de 622 d. C.), Maomé atuou como pregador na cidade de Meca, sofrendo forte
oposição visto que sua pregação contrariava os interesses dos habitantes da
cidade, cuja principal fonte de renda era a peregrinação de politeístas, que
para lá se dirigiam no intuito de adorar seus deuses[2]. Ao término deste período,
o sucesso de suas pregações foi decepcionante, sendo que seus seguidores se
limitavam a poucas dezenas.
Foi então que algo aconteceu.
Alguns homens de Iatribe (uma
cidade um pouco mais ao norte) convidaram Maomé para mudar-se para lá, no
intuito de fazê-lo o chefe religioso da cidade. O profeta do Islã aceitou a
oferta e saiu, com todos os seus seguidores, de Meca, lá se refugiando e na
qual rapidamente assumiu o poder religioso e político. Esta ida de Maomé para
Iatribe (que, posteriormente passou a ser chamada de Medina[3]) é conhecida por hégira,
vindo a mudar radicalmente os rumos do Islã e, com isto, os rumos da história.
Após consolidar seu poder em Medina,
Maomé passou a expandir sua área de influência, trazendo para debaixo de sua
lei religiosa as mais diversas tribos árabes, aumentando imensamente seu poder.
No ano de 630 d.C., Maomé
finalmente pôde se vingar dos habitantes de Meca, para lá se dirigindo com um
exército de 10.000. Vendo que era inútil resistir-lhe, Meca se rendeu e
permitiu que o novo líder dos árabes adentrasse na cidade sem que tivesse que
recorrer à guerra. Maomé mandou matar alguns inimigos pessoais, baniu da cidade
as imagens de seus ídolos e retornou a Medina, agora como senhor de quase toda
a península árabe.
No ano de 632, Maomé vem a morrer.
As circunstâncias de sua morte são de todo obscuras, mas o mais sólido relato
dela se refere ao um envenenamento de que fora vítima quatro anos antes e de
cujas consequências jamais se recuperou. Teria morrido em agonia, gritando
sentir como se sua veia aorta estivesse sendo cortada, o que nos remete
imediatamente à Sura 69, 44-47:
“44.E se (o Mensageiro) tivesse
inventado alguns ditos, em Nosso nome,
45. Certamente o teríamos
apanhado pela destra;
46. E então, Ter-lhe-íamos
cortado a aorta,
47. E nenhum de vós teria
podido impedir-Nos.”
Não deixa de ser curioso (aliás,
muitíssimo curioso) que Maomé teria morrido exatamente da forma como disse que
morreria se fosse um falso profeta...
Após sua morte, a comunidade
islâmica foi assumida por califas, dos quais o primeiro foi Abu Bakr, pai de
Aisha, a esposa preferida de Maomé. A Abu Bakr, sucedeu Omar; a este, sucedeu
Uthman (que, como veremos, foi quem efetivamente teria ordenado a redação do
Alcorão); e, a este, Ali. Com a morte trágica de Ali, a comunidade muçulmana se
dividiu para sempre entre dois grupos rivais e que, até a presente data, se
odeiam: os sunitas (partidários de Aisha) e os xiitas (partidários de Ali).
Mesmo divididos, os muçulmanos
ergueram, em poucas décadas, um império imenso, com sucessivas vitórias
militares ao ocidente e ao oriente, aproveitando a fraqueza tanto dos
bizantinos quanto dos persas, que, tendo se combatido mutuamente por séculos,
mutuamente enfraqueceram-se e não foram páreos para a ascensão dos árabes.
Esta, em resumo, a história de
Maomé e dos primeiros muçulmanos.
Dito isto, é necessário
esclarecermos que, para os muçulmanos, Maomé não é somente seu último profeta.[4] Ele foi alçado, dentro da
visão islâmica, à condição de “modelo de conduta”, razão pela qual tudo o que
ele fez (literalmente tudo) deve ser imitado e não pode
ser questionado.
E isto, como se pretende mostrar
nesta série de artigos, tem impacto profundíssimo no mundo islâmico até hoje.
Apenas para que o leitor tenha uma
pequena ideia, Maomé casou-se com Aisha quando ela ainda tinha seis
anos de idade. É verdade que ele esperou até que completasse 09 anos
para consumar o casamento, mas, mesmo assim, quando de tal consumação, Aisha
era ainda uma criança que não havia ainda atingido a adolescência e a
maturidade sexual. Uma vez que esta foi a atitude do profeta dos muçulmanos,
até hoje tal prática é comum no mundo islâmico, e qualquer tentativa de revê-la
provoca imediato acesso de ira entre os muçulmanos. Pois tal revisão,
implicitamente, equivaleria a dizer que o profeta estava errado em sua conduta.
E, dizê-lo, afronta gravemente a fé islâmica.
Dada, pois, a centralidade da
figura de Maomé para a religião islâmica, entendi ser necessário escrever as
linhas acima. Tenha o leitor em vista que, para a compreensão os próximos
artigos, este conhecimento mínimo é absolutamente imprescindível.
Em breve, falaremos de outro item
central à fé islâmica: o Alcorão.
[1]
Num conhecidíssimo haddith, a esposa
principal de Maomé, Aisha, chega mesmo a dizer: (Oh, mensageiro de Allah),
parece-me que teu Senhor se apressa em satisfazer teus desejos (Sahhi Muslim,
vol. VII, 3453)
[2]
Na verdade, não há evidências históricas de que Meca fosse, realmente, um
centro de peregrinação à época em que Maomé supostamente teria vivido.
[3]
De “al-Madina al-Nabi”, cuja tradução seria “a cidade do profeta”.
[4]
Dentro da concepção islâmica, o Islã seria a religião original da humanidade.
Os homens, contudo, afastam-se constantemente de Deus e passam a adorar ídolos.
Por isto, Deus, enviou dezenas de milhares de profetas a todos os povos da
terra para trazê-los de volta ao moneteísmo (cf. Sura 35, 24: “Certamente te enviamos com a verdade e como
alvissareiro e admoestador, e não houve povo algum que não tivesse tido um
admoestador”). Todos
os profetas pregaram a mesma mensagem islâmica, razão pela qual Maomé é,
propriamente falando, o último profeta do Islã. Muito embora a ideia em si seja
razoável, ela é flagrantemente desmentida pela história, visto que os tais
anunciadores (profetas, como gostam de dizer) do monoteísmo simplesmente não
existiram fora do judaísmo e do cristianismo.
* O autor é Juiz de Direito no Estado de São Paulo.