![]() | Sala Paulo VI Quarta-feira, 12 de Janeiro de 2011
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Santa Catarina de Génova
Prezados irmãos e irmãs!
Hoje gostaria de vos falar de outra santa que tem o nome de Catarina, depois de Catarina de Sena e Catarina de Bolonha; falo de Catarina de Génova, conhecida sobretudo pela sua visão sobre o purgatório. O texto que descreve a sua vida e o seu pensamento foi publicado nessa cidade da Ligúria em 1551; ele é dividido em três parte: a Vida propriamente dita, a Demonstração e declaração do purgatório — mais conhecida como Tratado — e o Diálogo entre a alma e o corpo (cf. Livro da Vida admirável e da doutrina santa, da beata Catarina de Génova, que contém uma útil e católica demonstração e declaração do purgatório, Génova, 1551). O redactor final foi o confessor de Catarina, o sacerdote Cattaneo Marabotto.
Catarina nasceu em Génova, em 1447; última de cinco filhos, ficou órfã do pai, Giacomo Fieschi, ainda em tenra idade. A mãe, Francesca di Negro, dispensou uma válida educação cristã, a tal ponto que a maior das duas filhas se tornou religiosa. Com 16 anos, Catarina foi concedida como esposa a Giuliano Adorno, um homem que, depois de várias experiências comerciais e militares no Médio Oriente, tinha regressado a Génova para casar. A vida matrimonial não foi fácil, também devido à índole do marido, apaixonado pelo jogo de azar. Inicialmente, a própria Catarina foi induzida a levar um tipo de vida mundana em que, contudo, não conseguia encontrar a serenidade. Depois de dez anos, no seu coração havia um profundo sentido de vazio e de amargura.
A conversão teve início a 20 de Março de 1473, graças a uma experiência singular. Tendo ido à igreja de são Bento e ao mosteiro de Nossa Senhora das Graças para se confessar, ajoelhou-se diante do sacerdote e «recebeu — como ela mesma escreve — uma chaga no coração, de um imenso amor de Deus», com uma visão tão clarividente das suas misérias e dos seus defeitos e, ao mesmo tempo, da bondade de Deus, que quase desmaiou. Foi tocada no coração por este conhecimento de si mesma, da vida vazia que ela levava e da bondade de Deus. Desta experiência derivou a decisão que orientou toda a sua vida, expressa com estas palavras: «Basta com o mundo e com os pecados» (cf. Vida admirável, 3rv). Então Catarina fugiu, suspendendo a Confissão. Voltou para casa, entrou no quarto mais escondido e chorou prolongadamente. Naquele momento, foi instruída interiormente sobre a oração e adquiriu a consciência do imenso amor de Deus por ela, pecadora, uma experiência espiritual que não conseguia expressar com palavras (cf. Vida admirável, 4r). Foi nessa ocasião que lhe apareceu Jesus sofredor que carregava a cruz, como é frequentemente representado na iconografia da santa. Poucos dias depois, foi ter com o sacerdote para finalmente realizar uma boa Confissão. Aqui teve início aquela «vida de purificação» que, durante muito tempo, lhe fez sentir uma dor constante pelos pecados cometidos e que a impeliu a impor-se penitências e sacrifícios para demonstrar o seu amor a Deus.
Neste caminho, Catarina foi-se aproximando cada vez mais do Senhor, até entrar naquela que é denominada «vida unitiva», ou seja, uma relação de profunda união com Deus. Na Vida está escrito que a sua alma era orientada e ensinada interiormente só pelo dócil amor de Deus, que lhe concedia tudo aquilo que ela precisava. Catarina abandonou-se de modo tão total nas mãos do Senhor que chegou a viver, durante cerca de vinte e cinco anos — como ela escreve — «sem o intermédio de qualquer criatura, instruída e governada unicamente por Deus» (Vida, 117r-118r), alimentada sobretudo pela oração constante e pela Sagrada Comunhão recebida todos os dias, o que não era comum na sua época. Só muitos anos mais tarde o Senhor lhe concedeu um sacerdote que cuidasse da sua alma.
Catarina hesitava sempre em confiar e manifestar a sua experiência de comunhão mística com Deus, sobretudo pela profunda humildade que sentia diante das graças do Senhor. Foi só a perspectiva de dar glória a Ele e de poder favorecer o caminho espiritual de outros que a levou a narrar aquilo que se verificava nela, a partir do momento da sua conversão, que é a sua experiência originária e fundamental. O lugar da sua ascensão aos vértices místicos foi o hospital de Pammatone, a maior estrutura hospitalar genovesa, da qual foi directora e animadora. Portanto, não obstante esta profundidade da sua vida interior, Catarina vive uma existência totalmente activa. Em Pammatone foi-se formando ao seu redor um grupo de seguidores, discípulos e colaboradores, fascinados pela sua vida de fé e pela sua caridade. O próprio marido, Giuliano Adorno, foi conquistado por ela, a ponto de abandonar a sua vida desregrada, de se tornar terciário franciscano e de se transferir para o hospital, para oferecer a sua ajuda à esposa. O compromisso de Catarina no cuidado dos doentes continuou até ao fim do seu caminho terreno, a 15 de Setembro de 1510. Desde a conversão até à morte, não houve acontecimentos extraordinários, mas dois elementos caracterizaram toda a sua existência: por um lado a experiência mística, ou seja, a profunda união com Deus, sentida como uma união esponsal e, por outro, a assistência aos enfermos, a organização do hospital e o serviço ao próximo, especialmente aos mais necessitados e abandonados. Estes dois pólos — Deus e o próximo — preencheram totalmente a sua vida, transcorrida praticamente entre as paredes do hospital.
Estimados amigos, nunca devemos esquecer que quanto mais amarmos a Deus e formos constantes na oração, tanto mais conseguiresmos amar verdadeiramente quantos estão ao nosso redor, quem está perto de nós, porque seremos capazes de ver em cada pessoa o Rosto do Senhor, que ama sem limites nem distinções. A mística não cria distâncias em relação ao outro, não cria uma vida abstracta, mas sobretudo aproxima do outro, porque se começa a ver e a agir com os olhos, com o Coração de Deus.
O pensamento de Catarina sobre o purgatório, pelo qual ela é particularmente conhecida, está condensado nas últimas duas partes do livro citado no início: o Tratado sobre o purgatório e oDiálogo entre a alma e o corpo. É importante observar que, na sua experiência mística, Catarina jamais tem revelações específicas sobre o purgatório ou sobre as almas que ali estão a purificar-se. Todavia, nos escritos inspirados pela nossa santa, é um elemento central, e o modo de o descrever tem características originais em relação à sua época. O primeiro traço original diz respeito ao «lugar» da purificação das almas. No seu tempo, ele era representado principalmente com o recurso a imagens ligadas ao espço: pensava-se num certo espaço, onde se encontraria o purgatório. Em Catarina, ao contário, o purgatório não é apresentado como um elemento da paisagem das vísceras da terra: é um fogo não exterior, mas interior. Este é o purgatório, um fogo interior. A santa fala do caminho de purificação da alma, rumo à plena comunhão com Deus, a partir da própria experiência de profunda dor pelos pecados cometidos, em relação ao amor infinito de Deus (cf. Vida admirável, 171v). Ouvimos sobre o momento da conversão, quando Catarina sente repentinamente a bondade de Deus, a distância infinita da própria vida desta bondade e um fogo ardente no interior de si mesma. E este é o fogo que purifica, é o fogo interior do purgatório. Também aqui há um traço original em relação ao pensamento do tempo. Com efeito, não se começa a partir do além para narrar os tormentos do purgatório — como era habitual naquela época e talvez ainda hoje — e depois indicar o caminho para a purificação ou a conversão, mas a nossa santa começa a partir da própria experiência interior da sua vida a caminho da eternidade. A alma — diz Catarina — apresenta-se a Deus ainda vinculada aos desejos e à pena que derivam do pecado, e isto torna-lhe impossível regozijar com a visão beatífica de Deus. Catarina afirma que Deus é tão puro e santo que a alma com as manchas do pecado não pode encontrar-se na presença da majestade divina (cf. Vida admirável, 177r). E também nós sentimos como estamos distantes, como estamos repletos de tantas coisas, a ponto de não podermos ver Deus. A alma está consciente do imenso amor e da justiça perfeita de Deus e, por conseguinte, sofre por não ter correspondido de modo correcto e perfeito a tal amor, e precisamente o amor a Deus torna-se chama, é o próprio amor que a purifica das suas escórias de pecado.
Em Catarina entrevê-se a presença de fontes teológicas e místicas das quais era normal haurir na sua época. Em particular, encontra-se uma imagem típica de Dionísio, o Areopagita, ou seja, aquela do fio de ouro que liga o coração humano ao próprio Deus. Quando Deus purifica o homem, liga-o com um fio de ouro extremamente fino, que é o seu mor, e atrai-o a si com um afecto tão forte, que o homem permanece como que «superado, vencido e totalmente fora de si». Assim, o coração do homem é invadido pelo amor de Deus, que se torna o único guia, o único motor da sua existência (cf. Vida admirável, 246rv). Esta situação de elevação a Deus e de abandono à sua vontade, expressa na imagem do fio, é utilizada por Catarina para manifestar a obra da luz divina nas almas do purgatório, luz que as purifica e eleva aos esplendores dos raios fúlgidos de Deus (cf. Vida admirável, 179r).
Queridos amigos, na sua experiência de união com Deus os santos alcançam um «saber» tão profundo dos mistérios divinos, no qual o amor e o conhecimento se compenetram, a ponto de ajudarem os próprios teólogos no seu compromisso de estudo, de intelligentia fidei, deintelligentia dos mistérios da fé, de aprofundamento real dos mistérios, por exemplo daquilo que é o purgatório.
Com a sua vida, santa Catarina ensina-nos que quanto mais amamos a Deus e entramos em intimidade com Ele na oração, tanto mais Ele se faz conhecer e acende o nosso coração com o seu amor. Escrevendo acerca do purgatório, a santa recorda-nos uma verdade fundamental da fé, que se torna para nós um convite a rezar pelos defuntos, a fim de que eles possam chegar à visão beatífica de Deus na comunhão dos santos (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 1032). Além disso, o serviço humilde, fiel e generoso, que a santa prestou durante toda a sua vida no hospital de Pammatone, é um exemplo luminoso de caridade para todos e um encorajamento especialmente para as mulheres que oferecem uma contribuição fundamental para a sociedade e a Igreja com a sua obra preciosa, enriquecida pela sua sensibilidade e pela atenção aos mais pobres e necessitados. Obrigado!
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Razão e Fé
"A tradição católica desde o início rejeitou o assim chamado fideísmo, que é a vontade de crer contra a razão. Creio quia absurdum (creio porque é absurdo) não é fórmula que interpreta a fé católica. Deus, na verdade, não é absurdo, mas sim é mistério. O mistério, por sua vez, não é irracional, mas uma superabundância de sentido, de significado, de verdade. Se, olhando para o mistério, a razão vê escuridão, não é porque no mistério não tenha a luz, mas porque existe muita (luz). Assim como quando os olhos do homem se dirigem diretamente ao sol para olhá-lo, veem somente trevas; mas quem diria que o sol não é luminoso, antes a fonte da luz? A fé permite olhar o “sol”, Deus, porque é acolhida da sua revelação na história e, por assim dizer, recebe verdadeiramente toda a luminosidade do mistério de Deus, reconhecendo o grande milagre: Deus se aproximou do homem, ofereceu-se ao seu conhecimento, consentindo ao limite criador da sua razão (cfr Conc. Ec. Vat. II, Cost. Dogm. Dei Verbum, 13). Ao mesmo tempo, Deus, com a sua graça, ilumina a razão, abre-lhe horizontes novos, imensuráveis e infinitos. Por isto, a fé constitui um estímulo a buscar sempre, a não parar nunca e nunca aquietar-se na descoberta inesgotável da verdade e da realidade. É falso o pré-juízo de certos pensadores modernos, segundo os quais a razão humana seria como que bloqueada pelos dogmas da fé. É verdade exatamente o contrário, como os grandes mestres da tradição católica demonstraram. Santo Agostinho, antes de sua conversão, busca com tanta inquietação a verdade, através de todas as filosofias disponíveis, encontrando todas insatisfatórias. A sua cansativa investigação racional é para ele uma significativa pedagogia para o encontro com a Verdade de Cristo. Quando diz: “compreendas para crer e creias para compreender” (Discurso 43, 9:PL 38, 258), é como se contasse a própria experiência de vida. Intelecto e fé, antes da divina Revelação, não são estranhas ou antagonistas, mas são ambas duas condições para compreender o sentido, para transpor a autêntica mensagem, se aproximando-se do limite do mistério. Santo Agostinho, junto a tantos outros autores cristãos, é testemunha de uma fé que se exercita com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste sentido, Santo Anselmo dirá em seu Proslogion que a fé católica é fides quaerens intellectum, onde o buscar a inteligência é ato interior ao crer. Será sobretudo São Tomás de Aquino – forte nesta tradição – a confrontar-se com a razão dos filósofos, mostrando quanta nova fecunda vitalidade racional vem ao pensamento humano do acoplamento dos princípios e da verdade da fé cristã." (Trecho da Catequese de Bento XVI - Racionalidade da fé em Deus - 21/11/2012)
domingo, 25 de maio de 2014
Santa Catarina de Génova
sexta-feira, 23 de maio de 2014
quinta-feira, 8 de maio de 2014
Artigos sobre o Islã: Parte III - O Alcorão
Artigos sobre o Islã: Parte III - O Alcorão
Dando continuidade à série sobre o Islã, o blog publica o terceiro texto de autoria de Alexandre Semedo de Oliveira. O primeiro, você acessa clicando em:
E o segundo clicando em:
Segue o terceiro texto:
Parte III - O Alcorão
Por Alexandre Semedo de Oliveira*
Nós já citamos nesta série de artigos acerca de uma
tendência natural do ser humano de imaginar que determinados padrões com os
quais alguém está acostumado são universais quando na verdade não são. Tal
tendência faz com que muitos ocidentais pensem no Alcorão como sendo algo
parecido com a Bíblia, ainda que contendo uma mensagem um tanto quanto
diferente.
Na verdade, contudo, o Alcorão é algo profundamente diverso.
Trata-se de um livro pequeno, com apenas 114 capítulos (as
suras, ou suratas). Alguns são muito grandes (a segunda sura tem 286
versículos); outros, bem pequenos (a sura 110 tem apenas quatro versículos). O
livro dos muçulmanos, portanto, é menor que o Novo Testamento.
As suras não estão dispostas em ordem cronológica. A que
primeiro teria sido revelada ocupa a 96ª posição nos Alcorões modernos. Também
não estão dispostas em ordem lógica, como acontece com as Sagradas Escrituras
cristãs. Na verdade, a disposição delas é bastante aleatória, mas, se fosse
para tentar estabelecer uma regra, poderíamos dizer que elas se encontram mais
ou menos (bem mais ou menos) dispostas da maior para a menor.
Por fim, cada sura tem um nome. A primeira (uma pequena
oração) chama-se “al fátiha”, ou “a abertura”; a segunda, “al bákara” (“a
vaca”); a terceira, “ali aimarana” (“a família de Aarão), etc.. E, por incrível
que possa parecer, o nome dado à sura, salvo raras exceções, não espelha o assunto
principal dela, sendo, também ele, um nome aleatório.
Assim, um brasileiro que está somente folheando um Alcorão,
ao ler o nome da segunda sura, poderia achar estranho que Deus tivesse dedicado
286 versículos para tratar de vacas. Mas, na verdade, a sura em questão é um
amálgama de diversos assuntos absolutamente desconexos, sendo que a mudança
entre eles é abrupta e, novamente, sem qualquer lógica interna. A longuíssima
sura “al bákara” tira seu nome de meros quatro versículos , nos quais se narra
uma fictícia conversa de Moisés com seu povo acerca do sacrifício de uma vaca.
Desta forma, a própria estrutura do Alcorão é um tanto
quanto desconcertante para um ocidental comum. Não há lógica na ordem das
suras, nos nomes dados a elas, nem, internamente, entre os assuntos nelas
tratados, o que faz da leitura do Alcorão algo um tanto quanto árduo.
Passemos, agora, a tratar de pontos importantes para a
compreensão deste estranho livro islâmico.
1) A posição
teológica – “Umm al-Kitab”.
A visão que um muçulmano tem do Alcorão diverge muito
daquela que os cristãos têm da Bíblia, especialmente da católica (que, no
fundo, é a única que nos interessa).
Para os católicos, cada livro da Bíblia teve um autor
diferente, que o escreveu com um propósito particular, que nele pôs seu estilo
próprio (e suas palavras típicas), mas que foi inspirado por Deus ao
escrever, de forma que, ao final das contas, escreveu tudo o que Deus queria e
apenas o que Ele desejava. Além disto, a Bíblia, por mais sagrada que seja, não
contém a totalidade da revelação divina, ombreando com a Tradição Apostólica,
completando-se ambas mutuamente.
Para um muçulmano, contudo, o Alcorão contém, materialmente,
a palavra de Deus aos homens. Não foi Maomé que o escreveu (mesmo porque,
lembremos, ele era analfabeto). O anjo Gabriel veio e ditou para o profeta
árabe exatamente as palavras que já se encontravam escritas em um livro eterno,
que existe desde sempre com Deus no céu. O Alcorão é, assim, “Umm al-Kitab”, ou
a mãe de todos os livros.
É óbvio que a ideia de que há no céu um livro não criado
cheira a politeísmo, visto que este livro guardaria pelo menos um dos atributos
divinos, tendo um ser em si mesmo. Além disto, não deixa de ser estranho que
este “umm al-kitab” contenha passagens corrigindo os comensais de Maomé (como
já visto) e outras tantas que existem apenas para resolver problemas da vida
dele. Por fim, é de todo absurdo que o livro eterno dos árabes contenha
passagens incompreensíveis e, segundo alguns, inclusive erros de gramática.
Mas, enfim, é esta a fé islâmica...
Justamente por conter a materialmente a palavra de Deus aos
homens, o Alcorão não pode ser traduzido. Ao ser vertido para uma outra
língua, ainda que muitíssimo bem traduzido, o texto contém palavras do tradutor
e, assim, deixou de ser o Alcorão propriamente dito. Um bom muçulmano, ainda que não saiba árabe,
deve lê-lo nesta língua. No mundo islâmico, é relativamente comum que pessoas
decorem todo o Alcorão em árabe sem conhecer nada de árabe, e, portanto, por
incrível que pareça, decoram um livro cuja mensagem desconhecem completamente.
Robert Spencer, em seu livro “The Complete Infidel’s Guide
to the Koran” narra que, um dia, um conhecido paquistanês disse-lhe ter muito
orgulho de sua fé islâmica a ponto de ter decorado todo o Alcorão. Disse,
ainda, que um dia pretendia comprar uma tradução do livro para saber exatamente
o que ele ensina...
2) A compilação do
Alcorão.
Muito embora o Alcorão refira-se a si mesmo em diversas
ocasiões como um “livro” (kitab) e
que se refira, também inúmeras vezes aos seus próprios versículos (ayat), o fato é que as revelações de
Maomé não surgiram enquanto livro nem possuíam inicialmente versículos.
Lembremo-nos que o “profeta” era analfabeto e que, portanto, não sabia
escrever.
As supostas revelações de Gabriel eram-lhe ditadas e Maomé,
em seguida, as recitava para seus discípulos. Estes, por sua vez, também as
recitavam, de forma que a religião islâmica foi se formando em torno de uma recitação,
e não em torno de um livro propriamente dito. Aliás, o próprio termo “Qu’ran”
significa “recitação”, o que basta para definir o seu caráter.
Portanto, as inúmeras vezes que o Alcorão refere-se a si
mesmo como um livro, que contém versículos são, claramente, anacronismos.
Trata-se de uma noção posterior retro-projetada em uma época que as
“recitações” já haviam sido compiladas em um único volume.
Assim, pergunta-se: quando e como foi compilado o Alcorão?
Para responder a esta pergunta, utilizar-me-ei, primeiramente, da
historiografia clássica dos muçulmanos, sem que isto represente uma adesão a
ela.
Após a morte de Maomé (ocorrida em 632 d.C.), seus
seguidores supostamente seguiram recitando as suras oralmente. Ocorre que o
califa então reinante (Abu Bakr) enfrentou uma revolta de algumas tribos árabes
e travou-se entre elas e os muçulmanos uma batalha, que entrou para a história
como a Batalha de Yamama. Nela, muitos muçulmanos morreram, inclusive um que
sabia todo o Alcorão de cor, o que fez com que o califa temesse pela
sobrevivência das revelações. Abu Bakr, então, determinou que um jovem
muçulmano (também ele conhecedor de todo o Alcorão de cor) colocasse as
revelações por escrito. Este homem se chamava Zaid bin Thabit, que muito
relutou em fazê-lo, dizendo que seria mais leve para ele erguer uma montanha do
que compilar o Alcorão.
Zaid, então, finalmente convencido a empreender tal tarefa,
entrevistou-se com vários muçulmanos e pesquisou inúmeros materiais para
escrever o texto[1].
Terminado seu trabalho, ao que tudo indica a compilação
feita ficou como que esquecida. O primeiro califa morreu e foi sucedido por
Omar. Este também morreu e foi sucedido por Uthman (que reinou entre os anos de
644 e 656 d. C.). Durante o reinado deste, dada a discordância de muitos
muçulmanos quanto ao texto do Alcorão, sentiu-se a necessidade de uma
padronização total das escrituras islâmicas. Foi então que Uthman, por volta do
ano de 653 d. C., tomou uma medida radical, que traria conseqüências muito
grandes para o mundo muçulmano.
3) A grande
padronização.
Segundo as lendas islâmicas, Maomé recebeu as recitações em
árabe, no dialeto da tribo dos Qu’raish (à qual ele próprio pertencia).
Contudo, em uma determinada altura, ele se queixou com Gabriel alegando ser
necessário que as demais tribos também pudessem recitar as revelações nos seus
próprios dialetos. Gabriel, então aquiesceu ao pedido de Maomé e permitiu a
recitação do Alcorão em sete dialetos distintos.
Uthman, contudo, partindo daquela antiga compilação de Zaid
Bin Thabit, reduziu novamente (com que autoridade, ninguém consegue explicar) a
recitação a apenas um dialeto, exatamente o da tribo dos Qu’raish. Ele mandou
que se fizessem cópias do texto de Zaid e que elas fossem mandadas para todo o
mundo muçulmano, com ordens expressas para que todas as demais versões fossem destruídas
até que não houvesse mais sinais delas.
Tal medida extrema trouxe duas conseqüências drásticas:
a) Uma vez que o cânon de Uthman foi imposto sobre todo o
mundo islâmico, é absolutamente impossível para um muçulmano demonstrar,
empiricamente, que o texto do Alcorão que ele hoje recita é o mesmo recitado
por Maomé, sem acréscimos nem subtrações. O postulado básico da teologia
islâmica (a de que a revelação corânica foi perfeitamente preservada por Deus)
tornou-se, então, impossível de ser verificado.
b) Com a padronização do texto num único dialeto, Uthman
frustrou o objetivo supostamente divino de que o Alcorão fosse recitado de
forma a se ter por facilitada sua compreensão. Hoje, todo muçulmano deve
recitá-lo em árabe clássico, mesmo que a quase totalidade dos fiéis de Allah
(mesmo os de língua árabe moderna) o desconheça, não tendo qualquer possibilidade,
conforme acima dito, de entender o conteúdo do livro.
Além disto, tem-se o objetivo de Uthman ao forçar uma
padronização absoluta do texto não impediu que, aqui e ali, surgissem vozes
discordantes demonstrando que o texto imposto é de exatidão no mínimo
muitíssimo discutível.
A voz discordante mais famosa foi a de Abdulha ibn Massud,
um dos companheiros de Maomé, a quem o próprio “profeta” indicou como sendo um
dos que sabiam recitar o Alcorão de cor. Ibn Massud recusou-se a aceitar a
codificação de Uthman, mantendo a sua própria, com apenas 111 suras (três a
menos do que as que constam dos alcorões modernos).
Outra voz dissonante de extrema importância foi Ubayy ibn
Ka’b, um outro muçulmano apontado por Maomé como estando entre os melhores
recitadores do Alcorão. O cânon de Ubayy tinha 116 suras, duas a mais do que o
de Uthman.
Pela própria historiografia islâmica, é hoje impossível a
qualquer um averiguar se o Alcorão moderno realmente corresponde à totalidade
das revelações que Maomé supostamente teria recebido e se, ao final das contas,
não contém nada além delas.
E isto, por si só, faz desabar o universo teológico do
Islã...
4) Uma história
diferente.
A história contada acima é a tradicional. Contudo, ao lado
dela, existe uma segunda história de como o Alcorão foi compilada, história
esta que, se verdadeira, põe abaixo o Islã como um todo.
Cada vez mais os estudiosos reconhecem um papel de destaque
no califa Abd al-Malik (que reinou entre os anos de 685 a 705 d.C.) na formação
do Islã tal qual nós o conhecemos. Há um hadith
em que se afirma que foi justamente em seu reinado que o Alcorão começou a ser
recitado nas orações feitas nas mesquitas. Num outro hadith, conta-se que Abd al-Malik teria dito: “Eu temo morrer no mês do Ramadã: nele eu nasci, nele fui desmamado, nele eu compilei o Alcorão, e nele eu fui eleito califa”.
Embora este seja um hadith
tardio, não se percebe nenhuma razão para que muçulmanos o tivessem inventado,
visto que sua própria existência colocaria em risco a fé islâmica. Se Abd
al-Malik compilou o Alcorão, então mais de sessenta anos se passaram entre a
morte de Maomé e o surgimento do livro sagrado do Islã, o que, de um lado,
explicaria a completa ausência de registros históricos acerca do Alcorão até a
virada do século sétimo para o oitavo, e, de outro, a afirmação de que, até
então, ele não era recitado nas mesquitas. E isto nos permitiria perguntar:
será que efetivamente este livro contém revelações feitas a um profeta árabe?
Ou será que ele não passa de uma compilação de textos destinados a dar ao
império dos califas uma unidade religiosa em torno de um monoteísmo que pudesse
fazer frente à fé do Ocidente?
Há sérios indícios de que, de fato, o Alcorão não
foi codificado por Uthman, mas bem depois dele. Durante o califado de Abd
al-Malik, houve um personagem de grande influência política e religiosa: Hajjaj
bin Yusuf, que teria sido quem, efetivamente, coletou o Alcorão a partir de
textos escritos por cristãos da Síria (o que explicaria a imensidão de
passagens sem sentido: tratar-se-iam – pasmem! – de traduções mal feitas) e
remodelados para se adequarem à cultura árabe.
Um apologista cristão do século oitavo (al Kindi) escreveu que
foi Hajjaj quem coletou os textos do Alcorão, causando a destruição de todas as
outras cópias então existentes.
Há ainda uma carta supostamente escrita pelo imperador
Bizantino Leão III para o califa Umar (que reinou entre 717 e 720 d.C.), na
qual se afirma: “Quanto ao seu livro,
você já nos deu prova de tais falsificações, e é sabido que um certo Hajjaj, (..),
que você mesmo apontou como governador da Pérsia, e cujos homens juntaram seus
livros antigos, que ele substituiu por outros compostos por ele próprio e de
acordo com seu próprio estilo, e que ele o disseminou por todos os cantos de
seu país (...)”
Eis aí...
Ao invés de Uthman, Abd al-Malik.
Ao invés de Zaid Bin Thabit, Hajjaj Bin Yusuf.
Ao invés de um desejo piedoso de preservar a revelação
corânica, um desejo político de conceder ao vasto império árabe uma unidade
religiosa.
Ambas estórias são nitidamente paralelas e se sobrepõem. No
mínimo, uma delas é falsa. Nenhuma delas conta com base histórica que possa
assegurar ser mais crível do que a outra, pois ambas, em última análise se
baseiam em hadiths escritos muito
depois.
Desta forma, o Alcorão mesmo cai na bruma da escuridão
histórica, sendo impossível saber até que ponto ele efetivamente corresponde
àquilo que Maomé pregou. E, segundo alguns, é mesmo impossível saber se Maomé,
ao final das contas, pregou alguma coisa ou mesmo que ele tenha existido.
Se Deus o permitir, falaremos mais sobre isto em outros
artigos. No próximo, pretendemos introduzir o leitor nos hadiths, que completam o Alcorão e formam, com ele, a base da
doutrina islâmica.
[1] A
relutância de Zaid e a necessidade da pesquisa por ele feita, adotada a
historiografia tradicional, são fatos incompreensíveis. Ora, se o Alcorão se
refere a si mesmo como um “livro” em diversas oportunidades, então, qual a
razão da hesitação de Zaid? E, se ele realmente era um hafiz (alguém que sabe de cor todo o Alcorão), então, porque
simplesmente não se sentou e escreveu o texto que já havia memorizado?
* O autor é Juiz de Direito no Estado de São Paulo.
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