Razão e Fé

"A tradição católica desde o início rejeitou o assim chamado fideísmo, que é a vontade de crer contra a razão. Creio quia absurdum (creio porque é absurdo) não é fórmula que interpreta a fé católica. Deus, na verdade, não é absurdo, mas sim é mistério. O mistério, por sua vez, não é irracional, mas uma superabundância de sentido, de significado, de verdade. Se, olhando para o mistério, a razão vê escuridão, não é porque no mistério não tenha a luz, mas porque existe muita (luz). Assim como quando os olhos do homem se dirigem diretamente ao sol para olhá-lo, veem somente trevas; mas quem diria que o sol não é luminoso, antes a fonte da luz? A fé permite olhar o “sol”, Deus, porque é acolhida da sua revelação na história e, por assim dizer, recebe verdadeiramente toda a luminosidade do mistério de Deus, reconhecendo o grande milagre: Deus se aproximou do homem, ofereceu-se ao seu conhecimento, consentindo ao limite criador da sua razão (cfr Conc. Ec. Vat. II, Cost. Dogm. Dei Verbum, 13). Ao mesmo tempo, Deus, com a sua graça, ilumina a razão, abre-lhe horizontes novos, imensuráveis e infinitos. Por isto, a fé constitui um estímulo a buscar sempre, a não parar nunca e nunca aquietar-se na descoberta inesgotável da verdade e da realidade. É falso o pré-juízo de certos pensadores modernos, segundo os quais a razão humana seria como que bloqueada pelos dogmas da fé. É verdade exatamente o contrário, como os grandes mestres da tradição católica demonstraram. Santo Agostinho, antes de sua conversão, busca com tanta inquietação a verdade, através de todas as filosofias disponíveis, encontrando todas insatisfatórias. A sua cansativa investigação racional é para ele uma significativa pedagogia para o encontro com a Verdade de Cristo. Quando diz: “compreendas para crer e creias para compreender” (Discurso 43, 9:PL 38, 258), é como se contasse a própria experiência de vida. Intelecto e fé, antes da divina Revelação, não são estranhas ou antagonistas, mas são ambas duas condições para compreender o sentido, para transpor a autêntica mensagem, se aproximando-se do limite do mistério. Santo Agostinho, junto a tantos outros autores cristãos, é testemunha de uma fé que se exercita com a razão, que pensa e convida a pensar. Neste sentido, Santo Anselmo dirá em seu Proslogion que a fé católica é fides quaerens intellectum, onde o buscar a inteligência é ato interior ao crer. Será sobretudo São Tomás de Aquino – forte nesta tradição – a confrontar-se com a razão dos filósofos, mostrando quanta nova fecunda vitalidade racional vem ao pensamento humano do acoplamento dos princípios e da verdade da fé cristã." (Trecho da Catequese de Bento XVI - Racionalidade da fé em Deus - 21/11/2012)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Artigos sobre o Islã: Parte III - O Alcorão


Artigos sobre o Islã: Parte III - O Alcorão

Dando continuidade à série sobre o Islã, o blog publica o terceiro texto de autoria de Alexandre Semedo de Oliveira. O primeiro, você acessa clicando em:


E o segundo clicando em:



Segue o terceiro texto:

                                               Parte III - O Alcorão

Por Alexandre Semedo de Oliveira*


Nós já citamos nesta série de artigos acerca de uma tendência natural do ser humano de imaginar que determinados padrões com os quais alguém está acostumado são universais quando na verdade não são. Tal tendência faz com que muitos ocidentais pensem no Alcorão como sendo algo parecido com a Bíblia, ainda que contendo uma mensagem um tanto quanto diferente.

Na verdade, contudo, o Alcorão é algo profundamente diverso.

Trata-se de um livro pequeno, com apenas 114 capítulos (as suras, ou suratas). Alguns são muito grandes (a segunda sura tem 286 versículos); outros, bem pequenos (a sura 110 tem apenas quatro versículos). O livro dos muçulmanos, portanto, é menor que o Novo Testamento.

As suras não estão dispostas em ordem cronológica. A que primeiro teria sido revelada ocupa a 96ª posição nos Alcorões modernos. Também não estão dispostas em ordem lógica, como acontece com as Sagradas Escrituras cristãs. Na verdade, a disposição delas é bastante aleatória, mas, se fosse para tentar estabelecer uma regra, poderíamos dizer que elas se encontram mais ou menos (bem mais ou menos) dispostas da maior para a menor.

Por fim, cada sura tem um nome. A primeira (uma pequena oração) chama-se “al fátiha”, ou “a abertura”; a segunda, “al bákara” (“a vaca”); a terceira, “ali aimarana” (“a família de Aarão), etc.. E, por incrível que possa parecer, o nome dado à sura, salvo raras exceções, não espelha o assunto principal dela, sendo, também ele, um nome aleatório.

Assim, um brasileiro que está somente folheando um Alcorão, ao ler o nome da segunda sura, poderia achar estranho que Deus tivesse dedicado 286 versículos para tratar de vacas. Mas, na verdade, a sura em questão é um amálgama de diversos assuntos absolutamente desconexos, sendo que a mudança entre eles é abrupta e, novamente, sem qualquer lógica interna. A longuíssima sura “al bákara” tira seu nome de meros quatro versículos , nos quais se narra uma fictícia conversa de Moisés com seu povo acerca do sacrifício de uma vaca.

Desta forma, a própria estrutura do Alcorão é um tanto quanto desconcertante para um ocidental comum. Não há lógica na ordem das suras, nos nomes dados a elas, nem, internamente, entre os assuntos nelas tratados, o que faz da leitura do Alcorão algo um tanto quanto árduo.

Passemos, agora, a tratar de pontos importantes para a compreensão deste estranho livro islâmico.


1) A posição teológica – “Umm al-Kitab”.

A visão que um muçulmano tem do Alcorão diverge muito daquela que os cristãos têm da Bíblia, especialmente da católica (que, no fundo, é a única que nos interessa).

Para os católicos, cada livro da Bíblia teve um autor diferente, que o escreveu com um propósito particular, que nele pôs seu estilo próprio (e suas palavras típicas), mas que foi inspirado por Deus ao escrever, de forma que, ao final das contas, escreveu tudo o que Deus queria e apenas o que Ele desejava. Além disto, a Bíblia, por mais sagrada que seja, não contém a totalidade da revelação divina, ombreando com a Tradição Apostólica, completando-se ambas mutuamente.

Para um muçulmano, contudo, o Alcorão contém, materialmente, a palavra de Deus aos homens. Não foi Maomé que o escreveu (mesmo porque, lembremos, ele era analfabeto). O anjo Gabriel veio e ditou para o profeta árabe exatamente as palavras que já se encontravam escritas em um livro eterno, que existe desde sempre com Deus no céu. O Alcorão é, assim, “Umm al-Kitab”, ou a mãe de todos os livros.

É óbvio que a ideia de que há no céu um livro não criado cheira a politeísmo, visto que este livro guardaria pelo menos um dos atributos divinos, tendo um ser em si mesmo. Além disto, não deixa de ser estranho que este “umm al-kitab” contenha passagens corrigindo os comensais de Maomé (como já visto) e outras tantas que existem apenas para resolver problemas da vida dele. Por fim, é de todo absurdo que o livro eterno dos árabes contenha passagens incompreensíveis e, segundo alguns, inclusive erros de gramática.

Mas, enfim, é esta a fé islâmica...

Justamente por conter a materialmente a palavra de Deus aos homens, o Alcorão não pode ser traduzido. Ao ser vertido para uma outra língua, ainda que muitíssimo bem traduzido, o texto contém palavras do tradutor e, assim, deixou de ser o Alcorão propriamente dito.  Um bom muçulmano, ainda que não saiba árabe, deve lê-lo nesta língua. No mundo islâmico, é relativamente comum que pessoas decorem todo o Alcorão em árabe sem conhecer nada de árabe, e, portanto, por incrível que pareça, decoram um livro cuja mensagem desconhecem completamente.

Robert Spencer, em seu livro “The Complete Infidel’s Guide to the Koran” narra que, um dia, um conhecido paquistanês disse-lhe ter muito orgulho de sua fé islâmica a ponto de ter decorado todo o Alcorão. Disse, ainda, que um dia pretendia comprar uma tradução do livro para saber exatamente o que ele ensina...


2) A compilação do Alcorão.

Muito embora o Alcorão refira-se a si mesmo em diversas ocasiões como um “livro” (kitab) e que se refira, também inúmeras vezes aos seus próprios versículos (ayat), o fato é que as revelações de Maomé não surgiram enquanto livro nem possuíam inicialmente versículos. Lembremo-nos que o “profeta” era analfabeto e que, portanto, não sabia escrever.

As supostas revelações de Gabriel eram-lhe ditadas e Maomé, em seguida, as recitava para seus discípulos. Estes, por sua vez, também as recitavam, de forma que a religião islâmica foi se formando em torno de uma recitação, e não em torno de um livro propriamente dito. Aliás, o próprio termo “Qu’ran” significa “recitação”, o que basta para definir o seu caráter.

Portanto, as inúmeras vezes que o Alcorão refere-se a si mesmo como um livro, que contém versículos são, claramente, anacronismos. Trata-se de uma noção posterior retro-projetada em uma época que as “recitações” já haviam sido compiladas em um único volume.

Assim, pergunta-se: quando e como foi compilado o Alcorão? Para responder a esta pergunta, utilizar-me-ei, primeiramente, da historiografia clássica dos muçulmanos, sem que isto represente uma adesão a ela.

Após a morte de Maomé (ocorrida em 632 d.C.), seus seguidores supostamente seguiram recitando as suras oralmente. Ocorre que o califa então reinante (Abu Bakr) enfrentou uma revolta de algumas tribos árabes e travou-se entre elas e os muçulmanos uma batalha, que entrou para a história como a Batalha de Yamama. Nela, muitos muçulmanos morreram, inclusive um que sabia todo o Alcorão de cor, o que fez com que o califa temesse pela sobrevivência das revelações. Abu Bakr, então, determinou que um jovem muçulmano (também ele conhecedor de todo o Alcorão de cor) colocasse as revelações por escrito. Este homem se chamava Zaid bin Thabit, que muito relutou em fazê-lo, dizendo que seria mais leve para ele erguer uma montanha do que compilar o Alcorão.

Zaid, então, finalmente convencido a empreender tal tarefa, entrevistou-se com vários muçulmanos e pesquisou inúmeros materiais para escrever o texto[1].

Terminado seu trabalho, ao que tudo indica a compilação feita ficou como que esquecida. O primeiro califa morreu e foi sucedido por Omar. Este também morreu e foi sucedido por Uthman (que reinou entre os anos de 644 e 656 d. C.). Durante o reinado deste, dada a discordância de muitos muçulmanos quanto ao texto do Alcorão, sentiu-se a necessidade de uma padronização total das escrituras islâmicas. Foi então que Uthman, por volta do ano de 653 d. C., tomou uma medida radical, que traria conseqüências muito grandes para o mundo muçulmano.


3) A grande padronização.

Segundo as lendas islâmicas, Maomé recebeu as recitações em árabe, no dialeto da tribo dos Qu’raish (à qual ele próprio pertencia). Contudo, em uma determinada altura, ele se queixou com Gabriel alegando ser necessário que as demais tribos também pudessem recitar as revelações nos seus próprios dialetos. Gabriel, então aquiesceu ao pedido de Maomé e permitiu a recitação do Alcorão em sete dialetos distintos.

Uthman, contudo, partindo daquela antiga compilação de Zaid Bin Thabit, reduziu novamente (com que autoridade, ninguém consegue explicar) a recitação a apenas um dialeto, exatamente o da tribo dos Qu’raish. Ele mandou que se fizessem cópias do texto de Zaid e que elas fossem mandadas para todo o mundo muçulmano, com ordens expressas para que todas as demais versões fossem destruídas até que não houvesse mais sinais delas.

Tal medida extrema trouxe duas conseqüências drásticas:

a) Uma vez que o cânon de Uthman foi imposto sobre todo o mundo islâmico, é absolutamente impossível para um muçulmano demonstrar, empiricamente, que o texto do Alcorão que ele hoje recita é o mesmo recitado por Maomé, sem acréscimos nem subtrações. O postulado básico da teologia islâmica (a de que a revelação corânica foi perfeitamente preservada por Deus) tornou-se, então, impossível de ser verificado.

b) Com a padronização do texto num único dialeto, Uthman frustrou o objetivo supostamente divino de que o Alcorão fosse recitado de forma a se ter por facilitada sua compreensão. Hoje, todo muçulmano deve recitá-lo em árabe clássico, mesmo que a quase totalidade dos fiéis de Allah (mesmo os de língua árabe moderna) o desconheça, não tendo qualquer possibilidade, conforme acima dito, de entender o conteúdo do livro.

Além disto, tem-se o objetivo de Uthman ao forçar uma padronização absoluta do texto não impediu que, aqui e ali, surgissem vozes discordantes demonstrando que o texto imposto é de exatidão no mínimo muitíssimo discutível.

A voz discordante mais famosa foi a de Abdulha ibn Massud, um dos companheiros de Maomé, a quem o próprio “profeta” indicou como sendo um dos que sabiam recitar o Alcorão de cor. Ibn Massud recusou-se a aceitar a codificação de Uthman, mantendo a sua própria, com apenas 111 suras (três a menos do que as que constam dos alcorões modernos).

Outra voz dissonante de extrema importância foi Ubayy ibn Ka’b, um outro muçulmano apontado por Maomé como estando entre os melhores recitadores do Alcorão. O cânon de Ubayy tinha 116 suras, duas a mais do que o de Uthman.

Pela própria historiografia islâmica, é hoje impossível a qualquer um averiguar se o Alcorão moderno realmente corresponde à totalidade das revelações que Maomé supostamente teria recebido e se, ao final das contas, não contém nada além delas.

E isto, por si só, faz desabar o universo teológico do Islã...


4) Uma história diferente.

A história contada acima é a tradicional. Contudo, ao lado dela, existe uma segunda história de como o Alcorão foi compilada, história esta que, se verdadeira, põe abaixo o Islã como um todo.

Cada vez mais os estudiosos reconhecem um papel de destaque no califa Abd al-Malik (que reinou entre os anos de 685 a 705 d.C.) na formação do Islã tal qual nós o conhecemos. Há um hadith em que se afirma que foi justamente em seu reinado que o Alcorão começou a ser recitado nas orações feitas nas mesquitas. Num outro hadith, conta-se que Abd al-Malik teria dito: “Eu temo morrer no mês do Ramadã: nele eu nasci, nele  fui desmamado, nele eu compilei o Alcorão, e nele eu fui eleito califa”.

Embora este seja um hadith tardio, não se percebe nenhuma razão para que muçulmanos o tivessem inventado, visto que sua própria existência colocaria em risco a fé islâmica. Se Abd al-Malik compilou o Alcorão, então mais de sessenta anos se passaram entre a morte de Maomé e o surgimento do livro sagrado do Islã, o que, de um lado, explicaria a completa ausência de registros históricos acerca do Alcorão até a virada do século sétimo para o oitavo, e, de outro, a afirmação de que, até então, ele não era recitado nas mesquitas. E isto nos permitiria perguntar: será que efetivamente este livro contém revelações feitas a um profeta árabe? Ou será que ele não passa de uma compilação de textos destinados a dar ao império dos califas uma unidade religiosa em torno de um monoteísmo que pudesse fazer frente à fé do Ocidente?

Há sérios indícios de que, de fato, o Alcorão não foi codificado por Uthman, mas bem depois dele. Durante o califado de Abd al-Malik, houve um personagem de grande influência política e religiosa: Hajjaj bin Yusuf, que teria sido quem, efetivamente, coletou o Alcorão a partir de textos escritos por cristãos da Síria (o que explicaria a imensidão de passagens sem sentido: tratar-se-iam – pasmem! – de traduções mal feitas) e remodelados para se adequarem à cultura árabe.

Um apologista cristão do século oitavo (al Kindi) escreveu que foi Hajjaj quem coletou os textos do Alcorão, causando a destruição de todas as outras cópias então existentes.

Há ainda uma carta supostamente escrita pelo imperador Bizantino Leão III para o califa Umar (que reinou entre 717 e 720 d.C.), na qual se afirma: “Quanto ao seu livro, você já nos deu prova de tais falsificações, e é sabido que um certo Hajjaj, (..), que você mesmo apontou como governador da Pérsia, e cujos homens juntaram seus livros antigos, que ele substituiu por outros compostos por ele próprio e de acordo com seu próprio estilo, e que ele o disseminou por todos os cantos de seu país (...)

Eis aí...

Ao invés de Uthman, Abd al-Malik.

Ao invés de Zaid Bin Thabit, Hajjaj Bin Yusuf.

Ao invés de um desejo piedoso de preservar a revelação corânica, um desejo político de conceder ao vasto império árabe uma unidade religiosa.

Ambas estórias são nitidamente paralelas e se sobrepõem. No mínimo, uma delas é falsa. Nenhuma delas conta com base histórica que possa assegurar ser mais crível do que a outra, pois ambas, em última análise se baseiam em hadiths escritos muito depois.

Desta forma, o Alcorão mesmo cai na bruma da escuridão histórica, sendo impossível saber até que ponto ele efetivamente corresponde àquilo que Maomé pregou. E, segundo alguns, é mesmo impossível saber se Maomé, ao final das contas, pregou alguma coisa ou mesmo que ele tenha existido.

Se Deus o permitir, falaremos mais sobre isto em outros artigos. No próximo, pretendemos introduzir o leitor nos hadiths, que completam o Alcorão e formam, com ele, a base da doutrina islâmica.





[1] A relutância de Zaid e a necessidade da pesquisa por ele feita, adotada a historiografia tradicional, são fatos incompreensíveis. Ora, se o Alcorão se refere a si mesmo como um “livro” em diversas oportunidades, então, qual a razão da hesitação de Zaid? E, se ele realmente era um hafiz (alguém que sabe de cor todo o Alcorão), então, porque simplesmente não se sentou e escreveu o texto que já havia memorizado?

* O autor é Juiz de Direito no Estado de São Paulo.

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